A Música Não Pode Parar, o filme que originou o prêmio mais infame do cinema
Framboesa de Ouro (Golden Raspberry Awards ou simplesmente Razzie Awards) é um prêmio cinematográfico que elege os piores filmes produzidos ao longo de um ano. Paródia do Oscar, o prêmio é atualmente escolhido por internautas membros da “associação”. Hoje a brincadeira é bem conhecida e divulgada pelo mundo, mas nem todo mundo sabe como surgiu essa inusitada premiação e o porquê de se chamar Troféu Framboesa.


Tudo começou em 1980. O americano John J. B. Wilson, redator publicitário, foi o responsável pela criação do famigerado Troféu Framboesa de Ouro. Ele tinha o hábito de convidar os amigos para se reunirem e jantarem em sua casa, em Los Angeles, nas noites de entrega do Oscar. Em 1980, Wilson convidou a turma para sua tradicional reuniãozinha do Oscar, desta vez para que eles próprios julgassem os filmes e dessem suas premiações aleatoriamente. E a brincadeira pegou.

Foi assim que a primeira “premiação” realizou-se na sala de Wilson. A partir de então, ele decidiu formalizar o evento, depois de assistir a uma dupla de filmes que estavam sendo lançados simultaneamente naquela temporada: A Música Não Pode Parar (Can’t Stop the Music) e Xanadu. O publicitário distribuiu para os amigos as cédulas para votarem no pior filme.


Can’t Stop the Music foi o primeiro filme a ganhar o Framboesa. Ambos lançados em meados de 1980, Xanadu e Can’t Stop the Music foram os maiores embaraços daquela temporada. Sucesso em termos de trilhas sonoras, os dois filmes foram fracassos retumbantes de crítica, com atuações canastronas, roteiros pífios e números musicais, no mínimo, kitsch. Xanadu, dirigido por Robert Greenwald, foi estrelado pela queridinha da época, Olivia Newton-John, e pelo veterano Gene Kelly. O filme mostra um jovem desenhista que é inspirado por uma musa (enviada por Zeus!) a abrir, junto com um empresário aposentado, a roller-disco que dá título ao filme.

Já Can’t Stop the Music, dirigido pela atriz Nancy Walker, é estrelado pelos alegres rapazes do conjunto Village People, também muito popular na época. David London e The Ritchie Family foram as atrações musicais coadjuvantes de A Música Não Pode Parar. O elenco também contou com Valerie Perrine, Steve Guttenberg, Paul Sand, June Havoc, Marilyn Sokol e Bruce Jenner (muito antes de se tornar Caitlyn Jenner), entre outros.


Na história, os integrantes do Village People se reúnem e descobrem a disco music (!), que passam a espalhar pelo mundo com a ajuda de amigos (uma ex-modelo e um aspirante a compositor). O filme está listado entre os 100 Piores Filmes Mais Divertidos Já Feitos, no guia oficial do Golden Raspberry Award, de John Wilson.

Originalmente intitulado Discoland… Where the Music Never Ends [Discolândia… Onde a Música Nunca Acaba], Can’t Stop the Music mostrou, de maneira bastante romanceada e surreal, a formação do grupo Village People. O produtor Allan Carr (o mesmo de Grease) anunciou o filme em junho de 1979, descrevendo-o como o “Cantando na Chuva para o público da discoteca”.
O timing do filme, no entanto, estava errado. Em meados de 1980, a moda das discotecas já estava em franca decadência nos EUA, onde a disco music começou a ser repudiada. Se o filme tivesse sido lançado um ano antes, talvez ainda pudesse ter se safado.

A Música Não Pode Parar estreou nos EUA em junho de 1980. Um pouquinho antes, em abril daquele ano, Ibrahim Sued antecipava, em sua coluna no jornal O Globo, o suposto sucesso que o filme faria.
O grande acontecimento cinematográfico e musical dos anos 1980 será, sem dúvida, o primeiro filme do grupo pop The Village People: “Can’t Stop the Music”… Voltando à mais pura tradição do “musical” americano, este filme é inspirado numa história autêntica: a do mais célebre grupo disco dos últimos anos: Village People.
(O Globo, 5 de abril de 1980)

Não deixa de ser engraçado constatar como Ibrahim estava enganado. Não apenas ele, mas muita gente que embarcou na ideia vendida antes da estreia do filme, que prometia algo revolucionário.
Com Can’t Stop the Music, a geração disco vai finalmente descobrir uma verdadeira superprodução musical como Hollywood tem o dom e o segredo: mais de 150 técnicos e 15 milhões de dólares foram empregados neste filme. Três meses e meio de filmagens nas ruas italianas de Greenwich Village, em Nova Iorque, onde o grupo fez sua estreia nos night-clubs estudantis e São Francisco, a grande capital americana de liberdade dos costumes, onde obtém triunfos em cada apresentação.
(O Globo, 5 de abril de 1980)

Mas o filme só chegou aos cinemas brasileiros um ano depois, em junho de 1981. Àquela altura, o sucesso do Village People já havia evaporado. O grupo tornou-se rapidamente datado, assim como a disco music. Para piorar, o filme já havia fracassado lá fora e passou quase despercebido aqui.
Os lendários críticos de cinema Gene Siskel e Roger Ebert selecionaram A Música Não Pode Parar como um dos piores do ano, em um episódio de 1980 de seu programa Sneak Previews. Eles comentaram que, embora as sequências musicais sejam decentes, até mesmo um filme musical precisa de uma narrativa decente, o que, no caso de A Música Não Pode Parar, foi ofuscado por um excesso de personagens aleatórios.



O nome do troféu (Golden Raspberry Award, no original em inglês) vem de uma expressão em inglês com a palavra raspberry [framboesa]. O termo é usado em sentido irreverente, como na expressão em inglês “blowing a raspberry” (cuja tradução para o português não faz sentido, mas seria o equivalente a soprar com a língua para fora, simulando o som de flatulência com a boca, ou seja, semelhante ao barulho de um “pum”).

Para completar o clima de deboche em cima do Oscar, as indicações do Framboesa saem um dia antes das indicações da Academia – e a “premiação” também é um dia antes da festa.
O prêmio é uma framboesa de plástico sobre um filme Super 8, pintado de tinta-spray dourada, que vale menos de US$5 (isso mesmo, menos de cinco dólares!). O hall da fama do Framboesa é liderado por Sylvester Stallone e Madonna. Segundo a premiação, Stallone é o pior ator de todos os tempos, com 40 indicações e 15 prêmios. Madonna possui 15 indicações e 9 prêmios.

Muito embora Xanadu e A Música Não Pode Parar figurem em qualquer lista de “piores filmes já feitos” que se preze, sou fã dos dois. Ambos brilham no mundo do “é tão ruim que é sensacional”. As trilhas sonoras permanecem extraordinárias e o visual dos filmes já vale a viagem ao submundo do cult-kitsch. E viva o Troféu Framboesa!