Laura Palmer é eterna


O mistério sobre a morte da enigmática personagem de Twin Peaks revolucionou a TV americana e transformou a série em fenômeno mundial

Cultuada por uma enorme e incansável legião de fãs, Twin Peaks fez ecoar no mundo todo a famosa pergunta “quem matou Laura Palmer?”. O episódio piloto da série foi exibido pela primeira vez em 8 de abril de 1990 na rede de televisão americana ABC. Acabou originando outros sete episódios, que formaram sua primeira temporada. A segunda temporada teve 22 episódios e foi ao ar até 10 de junho de 1991. 

A série, criada por Mark Frost e David Lynch, foi um dos maiores fenômenos televisivos mundiais. Em entrevista à Ana Maria Bahiana, em 1990, Frost disse: “No início, nós tínhamos a história do piloto, só. Porque nós não sabíamos se íamos ou não fazer uma série… Depois, a história aumentou, mas David precisou sair para cuidar de Coração Selvagem, e eu fiquei mais ou menos sozinho tendo que administrar 40 personagens diferentes que tinham, entre si, mais de 800 relações… Eu sabia onde eu queria ir, e, é claro, desde o início sabíamos quem havia assassinado Laura. E esse é o grande fascínio de uma série de TV, uma história por noite, é como Sherazade nas Mil e Umas Noites…” (Revista SET, Ed. 48 – ano V – Nº 6. – Julho de 1991)

Mark Frost e David Lynch

Quando o piloto foi lançado em VHS, tornou-se cult. Aqui no Brasil, a série só começou a ser transmitida pela Globo em 7 de abril de 1991, aos domingos, logo após o Fantástico.

Os principais jornais e revistas da época deram bastante destaque para aguardada estreia. O jornal O Globo, de 7 de abril de 1991, trouxe uma matéria de página inteira, assinada por Tom Leão:

O Globo, de 7 de abril de 1991

A Folha de S. Paulo não ficou de fora:

Folha de S. Paulo, 7 de abril de 1991

A revista TV Programa, do Jornal do Brasil de 5 de abril de 1991, trouxe matéria de Manoel Francisco Brito, de página dupla, sobre as duas estreias de peso da Globo naquele fim de semana dos dias 6 e 7 de abril: Os Simpsons e Twin Peaks.

Revista TV Programa, Jornal do Brasil, 5 de abril de 1991
Revista TV Programa, Jornal do Brasil, 5 de abril de 1991

A fórmula tinha tudo para não dar certo. De um lado, David Lynch, um dos mestres contemporâneos do absurdo e do desvio, um cineasta dado a enquadramentos ousados e uso de cores fortes. Do outro, os executivos da rede ABC de televisão, acostumada, como suas primas americanas, a evitar a ousadia e apostar apenas em experiências já testadas. Como num filme de Lynch, porém, as aparências eram apenas um engano. Desta estranhíssima e em princípio impossível união, surgiu o maior cult da TV nos Estados Unidos no ano passado, Twin Peaks (estreia de domingo, às 22h15), um seriado policial semanal beirando o fantástico e que, durante meses, deixou milhões de americanos loucos para saberem quem matou Laura Palmer, a principal personagem da história mas, numa manobra típica de Lynch, a única pessoa que não aparece, a não ser morta.

(Manoel Francisco Brito – Revista TV Programa, Jornal do Brasil, 5 de abril de 1991)

Infelizmente, a Globo esvaziou o impacto original da série ao exibi-la no Brasil. O problema é que a emissora “reformatou” os episódios para que coubessem no espaço da grade de programação. Com isso, cortou vários minutos de cada episódio, suprimindo trechos que considerava sem importância. Insatisfeita com a audiência, que minguou, a Globo passou a pular alguns episódios e logo depois cancelou por completo a transmissão da série, criando uma verdadeira confusão entre os que ainda tentavam acompanhar Twin Peaks.

Folha de S. Paulo, 16 de junho de 1991

Para piorar, a dublagem continha vários erros de tradução, o que só complicou ainda mais as coisas. Os brasileiros, frustrados, ficaram sem saber muitos detalhes da série e, principalmente, qual tinha sido seu desfecho real.

Folha de S. Paulo, 14 de abril de 1991

A fita de VHS de Twin Peaks, com o piloto da série, já havia sido lançada no Brasil, mas também não ajudou muito. Pelo contrário. Em sua matéria A cidade que virou ‘cult’, para O Globo (7 de abril de 1991), o jornalista Tom Leão explica a confusão:

Este piloto da série está disponível em vídeo no Brasil (Warner) há vários meses, com um detalhe: ele traz um final truncado e confuso que dá um parafuso na cabeça dos mais escolados no trabalho de Lynch (“Veludo azul”, “Coração selvagem”). O final confuso (que não revela o assassino de Laura Palmer) com o agente do FBI envelhecido, um anão e Laura, não tem nada a ver com a história. Na realidade, esse sonho está no terceiro episódio da série e o final que está na fita faz parte da segunda fase.

A edição brasileira do VHS com o piloto da série, lançado separadamente como um filme

A salvação só veio em 1993, quando a Record adquiriu Twin Peaks e exibiu o seriado na íntegra, com todos os episódios por completo, sem cortes, até 1994. Por aquela época, no entanto, o interesse por Twin Peaks já não era o mesmo de 1991. Ainda assim, a exibição da Record corrigiu o erro grosseiro da Globo e criou uma legião fiel de fãs brasileiros da série. Tanto que a reexibiu em 1995.

Folha de S. Paulo, 27 de setembro de 1993

Twin Peaks – “Picos Gêmeos”, uma expressão normalmente empregada para as glândulas mamarias femininas – é o nome de uma cidadezinha fictícia no noroeste dos EUA, quase encostada na fronteira com o Canadá. Sua poderosa economia gira em torno de uma madeireira. É num dos lagos que embelezam a região que amanhece o cadáver de Laura Palmer, uma loira adolescente que, além de namorada do capitão do time de futebol da escola, é adorada por todos os habitantes como um exemplo de generosidade. (Revista SET, Ed. 40 – ano IV – Nº 10 – Novembro de 1990)

Os mistérios envolvendo o crime afetavam direta ou indiretamente a vida de todos os excêntricos moradores da cidade, numa teia de acontecimentos bizarros e, por vezes, sobrenaturais. A Set de dezembro de 1990 trouxe uma entrevista com David Lynch feita por Ana Maria Bahiana. O diretor falou um pouco sobre a experiência com a série:

Ana Maria Bahiana – Muitos diretores são contra a TV. Você vê a TV como sendo um problema?

David Lynch – Eu também era contra a TV. E nunca havia sonhado trabalhar nela. Mas tive uma ótima experiência com Twin Peaks. Me deixaram completamente à vontade, na minha. Pude fazer tudo o que quis, dentro dos limites normais da televisão. E foi fantástico. (…) Sou apaixonado pelo conceito de telenovela, uma historia que continua. E isso eu pude oferecer: uma maneira de as pessoas conhecerem determinado personagem, que passa por tantas mudanças ao longo da história, uma coisa que você não pode fazer num filme.

Twin Peaks é um trabalho importante da TV e faz uso do formato épico e de códigos típicos da telenovela, inspirados por dramas como A Caldeira do Diabo (Peyton Place) e combinados com uma intrincada história policial, elementos do fantástico e uma dose generosa de comédia do absurdo”. (Masters of cinema – David Lynch, de Thierry Jousse, 2010). 

Como disse José Augusto Lemos na conclusão de sua matéria para a Set de novembro de 1990: “Seja como for, você nunca mais será o mesmo – desde os primeiros acordes da trilha assinada por Angelo Badalamenti, outra iluminada contribuição a esse passo decisivo na evolução humana que é transformar a televisão num veículo sensível e inteligente”.

A série original foi seguida pelo longa-metragem Twin Peaks – Os Últimos Dias de Laura Palmer (Twin Peaks: Fire Walk with Me, 1992), que serve como uma espécie de prólogo da série. Escrito e dirigido por David Lynch, o filme, no entanto, não foi bem-recebido pelo público.

Considerado confuso e quase impossível de ser compreendido por quem não havia acompanhado a série, o longa recebeu uma enxurrada de críticas negativas. Com o passar do tempo, porém, o filme começou a ser aclamado como “obra-prima”, como é muito comum acontecer depois de um distanciamento temporal.

David Lynch e a atriz Sheryl Lee (“Laura Palmer”) em 2017

Para surpresa geral, quase três décadas após o fim da série original, uma terceira temporada de Twin Peaks foi anunciada em 2014, para ir ao ar no canal Showtime. A estreia de Twin Peaks: The Return veio em maio de 2017. David Lynch e Mark Frost escreveram todos os episódios, e Lynch dirigiu. Na época, Frost enfatizou que os novos episódios não eram remake nem reboot, mas uma continuação da série e do filme.

Há na internet uma infinidade de sites dedicados a Twin Peaks, com todo tipo de informação sobre a série. Desde os fatos mais conhecidos, passando por explicações complexas, até as curiosidades mais inusitadas. Mas se você ainda não assistiu, muito cuidado com os spoilers na rede. Afinal, o grande charme da série é justamente mergulhar em seus mistérios.

Revista Time, outubro de 1990

Fiz um apanhado de fatos curiosos (coincidentes ou intencionais) sobre a produção da série. Tomei o cuidado de não incluir nenhuma informação “comprometedora”, ou seja, leia sem medo de estragar o suspense:

– A estampa do piso da Sala Vermelha é uma versão ampliada da estampa do chão da sala da casa do personagem Henry, de Eraserhead (1977), primeiro filme dirigido por David Lynch. A mesma estampa também aparece no casaco que Leland Palmer (Ray Wise) está usando no fim do primeiro episódio, quando ele dança com o retrato de Laura (Sheryl Lee). 

Twin Peaks (1990)
Estampa do casaco de Leland é a mesma do piso
Eraserhead (1977)

– O número do personagem Hank Jennings (Chris Mulkey) na prisão é 24601, o mesmo de Jean Valjean em Os Miseráveis (Les Misérables), clássico de Victor Hugo publicado em 1862. 

Chris Mulkey viveu Hank Jennings

– Nunca é revelado quem de fato atacou o Dr. Jacoby (Russ Tamblyn) no episódio 7 mas, de acordo com Mark Frost, foi a mesma pessoa que matou Laura Palmer.

– David Lynch e Mark Frost estavam trabalhando originalmente em uma adaptação para o cinema de Goddess, biografia de Marilyn Monroe escrita por Anthony Summers. Como não conseguiram os direitos do livro, o projeto no qual embarcaram em seguida, Twin Peaks, continha vários elementos da história de Marilyn – especialmente o fato de ela ter sido morta logo antes de mencionar em seu diário que iria contar ao mundo sobre o homem famoso e importante com quem estava tendo um caso. 

– O primeiro título pensado para Twin Peaks foi Northwest Passage. A personagem Josie Packard (vivida por Joan Chen) chamava-se originalmente Giovanna “Jo” Pasqualini Packard e seria interpretada por Isabella Rossellini, que na época namorava David Lynch. 

Isabella Rossellini e Joan Chen

– Sheryl Lee faz dois papéis: Laura Palmer (loira) e sua prima (morena). No filme Um Corpo que Cai (Vertigo, 1958), de Alfred Hitchcock, Kim Novak também faz dois papeis, uma loira e outra morena. Uma das personagens se chama Madeleine, e o personagem de James Stewart se chama John Ferguson. O nome da prima de Laura Palmer é uma fusão desses dois nomes: Madeleine Ferguson. 

– A personagem Madeleine Ferguson foi criada porque Lynch estava tão impressionado por Sheryl que quis tê-la regularmente na série. Outro detalhe: na trama, a personagem está vindo de Missoula. Missoula, no estado americano de Montana, é a cidade natal de David Lynch. 

– A população de Twin Peaks, na concepção original, deveria ser de 5.120 habitantes. No entanto, na época havia uma recusa contra séries de TV com temática rural. As redes de TV temiam que as populações urbana e suburbana em ascensão nos Estados Unidos não se identificassem com programas que se passassem em áreas rurais ou cidades do interior. Por isso foi pedido à rede ABC que na placa de Twin Peaks o número da população fosse 51.201 em vez de 5.120. No livro Visitor’s Guide to Twin Peaks, autorizado por David Lynch e Mark Frost, uma nota explica aos leitores que a população era, de fato, 5.120 habitantes, mas devido a um erro tipográfico, apareceu 51.201. 

– O piloto da série foi originalmente exibido como um filme de duas horas para a TV, mas foi depois dividido em um episódio de duas partes para a série. Houve também uma versão para o cinema do episódio piloto, lançada na Europa.

VHS com o episódio piloto, lançado no mercado europeu

– O agente de seguros que vai falar com Catherine (Piper Laurie) a respeito do seguro forjado se chama Walter Neff. O agente de seguros desonesto vivido por Fred MacMurray em Pacto de Sangue (Double Indemnity, 1944) também se chama Walter Neff. 

Piper Laurie

– Na Alemanha, a emissora de TV RTL cancelou a série após 20 episódios devido à baixa audiência. Tudo porque a SAT1, emissora rival, havia divulgado a identidade do assassino de Laura antes mesmo do primeiro episódio ir ao ar. 

– O personagem BOB surgiu quando David Lynch viu o cenógrafo Frank Silva escondido no quarto de Laura Palmer. Lynch filmou a famosa cena onde Silva aparece atrás da cama de Laura sem ter ideia de como ou por que a usaria. Mais tarde, quando filmava uma cena de Sarah Palmer (Grace Zabriskie) sentada gritando, Lynch notou que o reflexo de Silva era visível, por puro acidente. Foi aí que o diretor teve a ideia do personagem BOB como uma espécie de espírito de outro mundo, criando assim todo o mito que envolvia a série. 

Frank Silva: BOB

– Quando Twin Peaks foi ao ar pela primeira vez nos EUA, dois livros oficiais foram lançados como prequels (narrativas anteriores ao início da série): Dale Cooper – Minha Vida, Minhas Gravações e O Diário Secreto de Laura Palmer (ambos lançados no Brasil pela Editora Globo em 1991). O Diário foi encomendado por Lynch à sua filha Jennifer, então com 21 anos, a quem ele revelou todos os segredos de Twin Peaks para que o livro refletisse os acontecimentos da série com precisão. 

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QUEM SOU EU

Daniel Couri, formado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília, fã de cultura pop e autor dos livros Made in Suécia – O Paraíso Pop do ABBA (Página Nova, 2008) e Mamma Mia! (Panda Books, 2011). 

danielcouri@obscuradoria.com.br

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