Quem matou Sheila?


O ´ótimo O Fim de Sheila, elogiado na época de seu lançamento, permanece esquecido hoje em dia, mas foi bastante reprisado pela Rede Manchete na década de 1990

Os filmes da Rede Manchete eram especiais. Não necessariamente por serem grandes sucessos ou produções conhecidas. Pelo contrário. Na década de 1990, quando a emissora já não andava bem das pernas, vários desses filmes meio esquecidos foram reprisados à exaustão pelo canal.

Por aquela época, o catálogo da Manchete era formado por filmes que já haviam sido muito exibidos em outros canais e descartados, além de telefilmes rasteiros. Mas também era repleto de raridades. Na postagem Segredos femininos, falei sobre uma dessas raridades e agora resgato outra.

Trata-se de O Fim de Sheila (The Last of Sheila), filme de 1973 produzido e dirigido por Herbert Ross, cuja filmografia inclui vários sucessos como Visões de Sherlock Holmes (The Seven-Per-Cent Solution, 1976), Momento de Decisão (The Turning Point, 1977), A Garota do Adeus (The Goodbye Girl, 1977), California Suite (1978), Footloose – Ritmo Louco (Footloose, 1984) e Flores de Aço (Steel Magnolias, 1989), entre outros. O Fim de Sheila, no entanto, é uma pequena obra-prima que ficou (injustamente) esquecida. Gravei da TV, em 1994, quando a Manchete o reprisou na sessão Super Tela.

Com roteiro de Anthony Perkins, (o eterno Norman Bates de Psicose) e Stephen Sondheim (consagrado compositor de musicais icônicos da Broadway), o filme estreou nos cinemas americanos em junho de 1973. Esteve em cartaz também nos cinemas brasileiros em 1974. No final da década de 1970, foi exibido pela Bandeirantes. Ficou totalmente esquecido nos anos 1980 e reapareceu na Manchete, no comecinho dos anos 1990, onde foi bastante reprisado durante a primeira metade daquela década. Mas nunca chegou a ser lançado em vídeo e nem em DVD aqui no Brasil.

À época de seu lançamento, mesmo tendo sido elogiado pela crítica, o filme foi rapidamente esquecido. Com o passar das décadas, adquiriu — como acontece com frequência — um status cult. Mas, no Brasil, permanece obscuro.

O elenco, a direção e o roteiro sofisticados não impediram o filme de cair precocemente no esquecimento. Para os amantes do gênero “quem matou?”, a trama impecável oferece um complexo jogo, cheio de pistas, reviravoltas e dicas discretas, que fogem facilmente à percepção. Tanto que o ideal é ver O Fim de Sheila várias vezes, para captar e conferir as muitas sutilezas contidas nos diálogos, cenários e ações.

Sheila Green (Yvonne Romaine), uma colunista de fofocas de Hollywood, sai de uma festa, intempestivamente e a pé, altas horas da madrugada, após uma discussão com o marido Clinton (James Coburn). Acaba atropelada por um carro e morre. A pessoa que dirigia foge sem prestar socorro.

Um ano depois, Clinton, que é um excêntrico produtor cinematográfico, convida seis amigos do casal (que estavam presentes na trágica noite) para uma gincana — uma espécie de reality show particular. A ideia de fazer um filme sobre a vida de Sheila é o chamariz para atrair os seis convidados. Desta forma, reúne o pequeno grupo em seu requintado iate (cujo nome também é Sheila), que será o ponto de partida do tal jogo, previsto para durar uma semana. Na verdade, Clinton sabe que uma daquelas seis pessoas é a assassina. Mais: ele sabe qual delas é a pessoa que matou sua esposa, mas arma o complexo jogo para sua diversão sádica, como forma de se vingar.

“A radiografia de seis fracassados”

Os convidados são Philip (James Mason), Alice (Raquel Welch), Lee (Joan Hackett), Anthony (Ian McShane), Christine (Dyan Cannon) e Tom (Richard Benjamin). Todos direta ou indiretamente ligados ao cinema: o roteirista frustrado e sua esposa milionária, o diretor antiquado, a mordaz agente de talentos, a bela e temperamental atriz e seu namorado fanfarrão.

O grupo, inocentemente, acha que tudo não passa de mais uma divertida excentricidade de Clinton. Todos recebem um cartão com um “segredinho” de cada um deles, como ladrão (ou ladra), homossexual, ex-condenado(a), alcoólatra, molestador(a) de criancinhas, delator(a). Detalhe: os cartões com os segredos obscuros estão trocados e não com as pessoas às quais correspondem.

Ninguém sabe dos segredos um do outro e nem quem está com qual cartão. O objetivo é tentar descobrir o segredo dos outros jogadores sem que eles descubram o seu. A cada noite há uma caça às pistas, arquitetada cuidadosa e teatralmente por Clinton. A cada etapa do jogo, no decorrer da semana, o iate será ancorado em um porto diferente da Riviera Francesa, que servirá de cenário para a prova do dia. A ideia é que os segredos sejam expostos no decorrer do jogo, dia após dia. No final, a pessoa que matou Sheila será exposta, seguindo as intrincadas regras do jogo, criadas exatamente para este fim.

O ritmo pode parecer lento, mas o suspense é crescente, embora discreto, e entremeado por diálogos cheios de perspicácia, acidez e uma dose de refinado humor negro. O filme tem também o mérito de ser o único escrito pelo ator Anthony Perkins e pelo compositor Stephen Sondheim (considerado pelo jornal The New York Times como “o maior e talvez o mais conhecido artista do teatro musical americano”).

A inspiração para o filme partiu de uma série de sofisticados jogos organizados por Perkins e Sondheim na vida real, em Manhattan, durante o final dos anos 1960 e o começo dos 1970. Os dois eram fascinados por jogos de charadas e detetives e costumavam promover esse tipo de gincana particular para os amigos. Entre esses amigos estava o diretor Herbert Ross, que os encorajou a escrever um roteiro baseado nesse tipo de jogo.

Anthony Perkins e Stephen Sondheim, roteiristas de O Fim de Sheila

Perkins e Sondheim receberam o Edgar Allan Poe Award de Melhor Roteiro Cinematográfico, em 1974. O Edgars, como é popularmente conhecido, é uma premiação concedida pela organização Mystery Writers of America (MWA) aos melhores autores e roteiristas de mistério e histórias policiais, nas áreas de literatura, cinema, série de TV e teatro.

Embora Stephen Sondheim já fosse um músico e compositor de prestígio, a trilha sonora do longa não foi arranjada por ele e sim Billy Goldenberg. O tema de encerramento, Friends, cantado pela então estreante Bette Midler, foi a primeira de suas canções a entrar em um filme. A faixa fazia parte de seu álbum de estreia, The Divine Miss M, lançado no ano anterior.

Álbum e compacto The Divine Miss M (1972)

As filmagens foram prejudicadas por sucessivos conflitos (internos e externos) como atrasos, condições climáticas, enjoos, choque de personalidades e confinamento do elenco e produção no iate, além dos ataques de estrelismo de Raquel Welch, com direito, inclusive, a objetos cenográficos atirados no set.

Raquel Welch e James Mason no set de O Fim de Sheila

James Mason chegou a declarar, certa vez, que Welch era “a atriz mais egoísta, mal-educada e descortês com quem já tive o desprazer de trabalhar”. Mexericos à parte, nada disso pode ser notado no resultado final do filme. O Fim de Sheila é, sem dúvida, imperdível para quem aprecia um mistério engenhosamente bem construído.

O roteiro foi romanceado e transformado em livro, como estratégia para divulgação do filme
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QUEM SOU EU

Daniel Couri, formado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília, fã de cultura pop e autor dos livros Made in Suécia – O Paraíso Pop do ABBA (Página Nova, 2008) e Mamma Mia! (Panda Books, 2011). 

danielcouri@obscuradoria.com.br

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