Os rapazes da banda


Mais de cinco décadas após a estreia de Os Rapazes da Banda no cinema, seus contundentes e corrosivos diálogos continuam dividindo opiniões sobre os tormentos e flagelos dos homens gays da década de 1960

Na matéria de capa da Revista da Cultura (edição 52, novembro de 2011), a antropóloga Heloísa Buarque de Almeida ponderou: “Ser gay, hoje, é bem mais fácil do que nos anos 1950, quando nem era possível assumi-lo publicamente. Nem por isso a homofobia acabou. Quanto mais visibilidade, surge uma reação violenta contra; os ataques a homossexuais estão crescendo, apesar desses avanços. É positivo, no entanto, que eles possam expressar melhor seus sentimentos”.

De lá pra cá, as coisas já evoluíram um pouco mais e, ao mesmo tempo, também parecem regredir em alguns aspectos. É a tal reação contra, que surge à medida em que novos direitos vão sendo conquistados por gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros.

O elenco de Os Rapazes da Banda (The Boys in The Band)

Esse preâmbulo foi apenas para falar de Os Rapazes da Banda (The Boys in The Band), um dos melhores filmes que já assisti, independentemente da temática gay. Baseado na peça homônima do dramaturgo americano Mart Crowley, estreou nos cinemas em março de 1970. A peça off-Broadway havia estreado em 1968 e teve 1001 apresentações. Estourou no final dos anos 1960, ao mostrar gays com vida comum, fato inédito até então. Trouxe visibilidade, chacoalhou valores e incorporou os homossexuais ao cotidianos das pessoas “comuns”. Uma marco na época.

O diretor William Friedkin

O elenco da versão cinematográfica, dirigida por William Friedkin (Operação FrançaO Exorcista), é o mesmo do teatro. Apesar de simples na estrutura, a história criada por Crowley é cheia de sutilezas e complexa nas subjetividades. Toda a ação se passa no apartamento de Michael (Kenneth Nelson), localizado no Upper East Side (área nobre de Manhattan, em Nova York). Michael resolve comemorar o aniversário do amigo Harold (Leonard Frey), um judeu culto e afetado, e recebe alguns convidados em sua casa, os tais “rapazes da banda”. Um pequeno grupo de amigos, gays na faixa dos trinta e poucos anos.

Da esquerda para a direita, os rapazes da banda: Kenneth Nelson, Frederick Combs, Laurence Luckinbill, Keith Prentice, Reuben Greene, Cliff Gorman, Leonard Frey e Peter White

Um a um, o leque de tipos vai se formando: o decorador Emory (Cliff Gorman) é o típico estereótipo do gay efeminado. Hank (Laurence Luckinbill) é um discreto professor de Matemática, prestes a se divorciar da esposa. O bonitão Larry (Keith Prentice) é fotógrafo de moda e namorado de Hank. O comportado Bernard (Reuben Greene), negro e de origem humilde, é balconista de uma livraria. O anfitrião Michael, um alcoólatra em recuperação, namora Donald (Frederick Combs), um rapaz de boa índole, porém “medíocre”, como ele mesmo se descreve. O garoto de programa Cowboy (Robert La Tourneaux), protótipo do “louro burro”, completa a galeria de tipos. O jovem michê, vestido de cowboy, é o “presente” de Emory para o aniversariante.

“Cowboy”, o presente de aniversário

Mas os alegres amigos não contavam com a presença de Alan (Peter White), ex-colega de quarto de Michael, dos tempos da faculdade. Alan é o típico heterossexual “careta” e convencional. Ele aparece de surpresa para fazer uma visita, após muitos anos sem encontrar Michael. A partir daí se configura a crônica de um desastre anunciado.

O que começa como um constrangimento se torna gradativamente uma sequência de ironias, que por sua vez se transformam em alfinetadas, agressões e revelações. O clima de festa dá lugar a embaraçosos rancores que vão emergindo de cada um dos personagens. Tudo regado a muita bebida e humor ácido. Os diálogos são rápidos e afiadíssimos.

Assim como a peça, o filme – moderníssimo para a época – traça um painel do embate de opiniões entre o grupo de amigos. Questões que até hoje fazem parte da vida da maioria dos gays, como a dificuldade de relacionamentos monogâmicos em contraponto ao desejo de estabelecer uma união estável, aceitação da própria homossexualidade, convivência com a culpa católica, preocupação com a aparência física e o envelhecimento, entre outras. Isso quando não apenas os gays, mas a sociedade em geral vivia uma era de revolução e liberdade sexual, uma década antes do surgimento do vírus da Aids.

Ainda que, à primeira vista, pareça um filme que só interessaria ao público gay, Os Rapazes da Banda fala de angústias inerentes ao ser humano, seja homem, mulher, hetero ou homossexual. Mas as questões são tratadas num universo gay.

O autor da peça, Mart Crowley (primeiro à esquerda), com o elenco durante a produção do filme

Como aconteceu algumas vezes com trabalhos artísticos – especialmente no cinema – que alcançaram sucesso e visibilidade meteóricos, o elenco de The Boys in The Band sofreu uma espécie de “maldição”. Na virada da década de 1960 para a de 1970, participar de qualquer coisa (filme, peça, programa de TV etc.) que abordasse a homossexualidade era arriscado para a carreira de qualquer artista.

O elenco ficou marcado pela peça e pelo filme. Passaram de aplaudidos e elogiados a desempregados, drogados e excluídos. Dos nove atores integrantes do elenco, apenas um está vivo (Laurence Luckinbill, com 90 anos). Dos oito já falecidos, cinco morreram em decorrência da Aids. O que aconteceu ao elenco não deixa de ser cruel e emblemático. O destino do autor Mart Crowley (1935-2020) também não foi dos mais felizes: caiu no ostracismo logo após o estouro da peça.

Mart Crowley em 2018

Os Rapazes da Banda ganhou uma montagem brasileira pela primeira vez em São Paulo, em 1970, no Teatro Cacilda Becker. Produzida por Eva Wilma e John Herbert, tinha no elenco Raul Cortez, Walmor Chagas, Paulo César Pereio, Otávio Augusto, Gésio Amadeu, Dennis Carvalho e o próprio John Herbert. Apesar do sucesso de público, sofreu repressão da censura (a ditadura militar estava no auge) por tratar abertamente de relações homossexuais.

Cartaz da montagem brasileira

A censura no Brasil também entrou em ação na época de lançamento do filme, em 1970. Os Rapazes da Banda só foi liberado no Brasil em 1976, porém sem grande impacto no público. As críticas, meio mornas, foram contraditórias.

Folha de S. Paulo, 10 de novembro de 1976

Jairo Ferreira, crítico de cinema da Folha de S. Paulo, chamou o filme de “pastoso, às vezes liquefeito”, acrescentando que “o filme pretende ser uma comédia, mas termina sendo um dramalhão, um antimusical de declarado mau gosto, onde a tônica é o grotesco”, não sem antes dizer que “os personagens não têm nenhuma dignidade”. Jairo Ferreira desmereceu o filme também pelo atraso com que chegou aos cinemas brasileiros:

“Depois de cumprir uma pena de seis anos nas prateleiras da Censura, Os Rapazes da Banda (The Boys in The Band, 1970) chega ao público sem nenhum corte, o que significa pouco ou nada, pois o filme sofreu um processo de defasagem que lhe reduziu quase todo o interesse.” (Folha de S. Paulo, 10 de novembro de 1976).

Por outro lado, o crítico jornal O Globo, Fernando Ferreira, foi de opinião contrária:

Os vários anos que decorreram entre o lançamento, nos Estados Unidos, de The Boys in The Band (o filme é de 1970) e sua liberação, no Brasil, não lhe retiraram o interesse. A peça de Mart Crowley, que também adaptou e produziu o filme, contém em si elementos suficientemente instigantes e a problemática que coloca em foco — da solidão e confinamento das minorias — é das tais que sempre despertará a emoção ou a polêmica. (O Globo, 17 de novembro de 1976)

Outra crítica também do jornal O Globo, de 14 de novembro de 1976, esclareceu o título do filme:

Das informações da peça, disse Mart Crowley — que também é o produtor e roteirista do filme: “Inspirei-me um pouco naqueles musicais da década de 40, quando alguém como Francis Langford ou Peggy Lee dizia, às tantas: ‘Olha, vamos dar uma mãozinha aos rapazes da banda’. Segundo Crowley, esse tipo de comentário, dentro dos filmes, queria, em síntese, dizer que estava na hora de olhar para as minorias esquecidas. E é exatamente de uma minoria marginalizada que trata o filme. Seu personagem principal, Michael, é um homossexual que tem dificuldades em assumir-se como tal e que descobre na afetividade possessiva de sua mãe a razão de ser de seu comportamento social. (O Globo, coluna Cinema – As estreias da semana, 14 de novembro de 1976)

Mais de uma década depois de sua estreia no cinema, o filme foi exibido pela primeira vez na TV brasileira em 25 de setembro de 1981, na Globo. Para a televisão, o filme foi liberado pela censura com poucos cortes, para exibição após 23h20, como informou o crítico Paulo Perdigão na sinopse dos filmes na TV do jornal O Globo daquela data (25 de setembro de 1981). “Na época, o texto causou escândalo por abordar com espantosa franqueza a questão do homossexualismo masculino, numa chave de psicodrama com ingredientes de humor cruel e perversidade”. A sinopse também dizia que “o filme (…) é o que se pode definir como uma análise de grupo devassando tormentos e flagelos do mundo ‘gay’ estilo americano, safra dos anos 60.”

A sinopse da coluna de filmes daquele dia na TV, publicada na Folha de S. Paulo daquela mesma data (25 de setembro de 1981), complementou as informações: “Uma comédia de risos e situações constrangedoras e reveladoras, que o mundo ‘gay’ considera séria e bem feita. Produzido em 1970, o filme teve problemas com a censura brasileira e só foi liberado seis anos depois. Agora chega à TV com alguns cortes.”

O DVD do filme foi lançado nos EUA no final de 2008. Aqui no Brasil, após um longo atraso, foi finalmente lançado pela Cult Classic em 2012. Em 2015, saiu em Blu-ray nos EUA.

Em 2011, o diretor americano Crayton Robey realizou o documentário Making the Boys, que mostra os bastidores da produção tanto da peça quanto do filme. Foi destaque do Festival Mix Brasil de 2011. Mesmo assim, The Boys in The Band permanece um filme desconhecido para a maioria do público (até mesmo entre os gays), o que é uma pena. Não apenas por ser um divisor de águas na história do cinema, mas também por ter sido a primeira produção a tratar abertamente da temática gay, sem precisar apelar para nenhuma cena de sexo sequer. Quase seis décadas depois, os diálogos contundentes e corrosivos de Os Rapazes da Banda continuam dividindo opiniões. Mais do que qualquer tentativa de choque visual.

Em 2020, o filme ganhou um remake na Netflix, dirigido por Joe Mantello e produzido por Ryan Murphy, entre outros.

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QUEM SOU EU

Daniel Couri, formado em Jornalismo pelo Centro Universitário de Brasília, fã de cultura pop e autor dos livros Made in Suécia – O Paraíso Pop do ABBA (Página Nova, 2008) e Mamma Mia! (Panda Books, 2011). 

danielcouri@obscuradoria.com.br

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