“A maldade está em todos os lugares. Até mesmo no paraíso”
Em uma das postagens aqui do site, falei sobre Morte na Praia, um dos romances policiais de Agatha Christie que mais gosto. A adaptação para o cinema é, também, uma das minhas favoritas.
O mais comum é que um livro, quando transposto para a tela grande, não fique tão bom quanto o original. No caso de Morte na Praia, a trama foi sabiamente adaptada por Anthony Shaffer, que já havia roteirizado o bem-sucedido Morte no Nilo (Death on the Nile, 1978), além de outros ótimos suspenses como Frenesi (Frenzy, 1972) e O Homem de Palha (The Wicker Man, 1973).

Assassinato num Dia de Sol (Evil Under The Sun) estreou nos EUA em março de 1982 (no Brasil, estreou em novembro do mesmo ano). Embora não esteja entre as mais aplaudidas quando se fala em obras de Agatha Christie que viraram filme, trata-se de uma adaptação divertida e inteligente.

Alguns personagens foram suprimidos e outros retrabalhados para servirem aos propósitos cinematográficos. A direção coube a Guy Hamilton, que já havia dirigido outra adaptação (apagadinha) de Agatha Christie, A Maldição do Espelho (The Mirror Crack’d, 1980) e era conhecido por ter dirigido vários filmes de 007.

O elenco é recheado de estrelas como Maggie Smith, Jane Birkin, James Mason e Roddy McDowall. O papel de Poirot foi de Peter Ustinov (na minha opinião, o melhor Poirot), que já havia sido o detetive belga em Morte no Nilo, quatro anos antes.

As personagens Mrs. Castle e Rosamund Darnley, originalmente do livro, foram mescladas e viraram, no filme, uma só: Daphne Castle (Maggie Smith). Outra personganem que sofreu alteração no roteiro foi Emily Brewster, que virou Rex Brewster (Roddy McDowall), um escritor afeminado e afetado. Já o Reverendo Stephen Lane e o Major Barry, da história original, foram cortados da versão cinematográfica.



O cenário da história original — North Devon, na costa inglesa — também foi alterado, passando para uma ilha fictícia do Mar Adriático. O reino da Tyrania, mencionado no filme, também é fictício. As locações deslumbrantes das filmagens foram em Maiorca, na Espanha, onde morava, na época, o diretor Guy Hamilton. O roteirista Anthony Shaffer explicou: “O cenário é importante. A ilha tinha que ser uma estrela da história também. Assim como o navio a vapor em Morte no Nilo e o trem em Assassinato no Expresso do Oriente (Murder on the Orient Express, 1974) foram estrelas desses filmes.”



O tom sombrio, comum nos filmes de suspense, não existe em Assassinato num Dia de Sol. Além do cenário de cores vivas e paisagens paradisíacas, os personagens ganharam ares cômicos e afiados, com diálogos ácidos e espirituosos, mas sem perder a essência de intriga e mistério da história. Maggie Smith, Diana Rigg e Sylvia Miles estão especialmente irresistíveis.
Paulo Francis, que na época estava em Nova York e viu a estreia do filme lá, escreveu em sua coluna na Folha de S. Paulo de 20 de março de 1982:
“Evil Under The Sun foi malhado de cima a baixo. É o único [dos filmes que ele havia assistido naquela temporada] que presta, realmente. Ri às bandeiras despregadas com a viadagem de Diana Rigg e Maggie Smith, com as palhaçadas de Peter Ustinov como Hercule Poirot, e a cena, Majorca. Chique, bonita, gente falando inglês da Inglaterra (quase sempre), boa vida etc., confortou meu coração de batata frita sem molho.”



Os figurinos são espetaculares, bem exagerados, mas fiéis à época em que se passa a trama (final da década de 1930). Outro ponto alto é a trilha sonora, composta inteiramente por músicas de Cole Porter. A ideia foi do figurinista Anthony Powell e combinou perfeitamente com a história. Os produtores escolheram o compositor e maestro John Lanchbery para selecionar os temas de cada personagem (incluindo a ilha) e adaptar as canções. Grande parte delas, sucessos de Cole Porter como I Concentrate On You, You’re The Top, Begin The Beguine, I’ve Got You Under My Skin e outras, orquestradas especialmente para o filme.



“Impossível não se lembrar das roupas e do cenário após assistir Assassinato num Dia de Sol. E das músicas”, escreveu o jornalista Ed Blank no jornal Pittsburgh Press, em 5 de março de 1982. “Nennhum outro filme de mistério oferece os figurinos sensacionais, ainda que por vezes extravagantes, de Anthony Powell, belas locações em Maiorca e uma trilha sonora exuberante de Cole Porter, com arranjos de John Lanchbery.”

Quando o filme estreou nos cinemas brasileiros, no final de 1982, a crítica ficou dividida. Luciano Ramos, do jornal Folha de S. Paulo, malhou o filme (como Paulo Francis já havia antecipado lá fora) em sua crítica intitulada “Um assassinato tão banal como qualquer outro”:
(…) Um espetáculo sem emoção é como um prato sem sal e sem tempero, absolutamente insípido e duro de engolir. Essa é a característica básica de Assassinato Num Dia de Sol (…).
O velho esquema do detetive particular que, no final, reúne todos os suspeitos numa sala e indica o criminoso após uma longa preleção onde vai expondo os motivos de cada um. Invariavelmente, todos têm razões de sobra para ter cometido o crime e apresentam um furo em seu álibi. (…) O grande mistério, porém, é o motivo que explicaria tamanha insistência num esquema tão tedioso.
A grande estrela do filme, entretanto, é a música de John Lanchbery, baseada em temas de Cole Porter. Ela desenvolve comentários cômicos ao longo do filme e mantém a atmosfera de elegância necessária para emoldurar este assassinato ocorrido num hotel de grã-finos, no litoral do Mediterrâneo.
(Folha de S. Paulo, 17 de novembro de 1982)

Por outro lado, um mês depois, Valério de Andrade, na coluna “O bonequinho viu”, do jornal O Globo, aplaudiu o filme:
Agatha Christie arma uma fascinante teia de aranha com o seu gênio inventivo e a sua habilidade para arquitetar uma trama na qual a identidade do criminoso permanece oculta até o último momento. (…)
Essa fórmula, como se sabe, não permite que o leitor-espectador se antecipe ao desfecho tradicional, isto é, até quando o detetive reúne todos os personagens numa sala e desmascara o culpado. Como Poirot é o único que conhece todas as peças do quebra-cabeça, cabe a ele a revelação final do crime, o que, naturalmente, é feito com inteligência e senso de humor. O grande mérito do roteirista Anthony Shaffer — e consequentemente do próprio filme — é ter se mantido fiel ao estilo e ao espírito de Agatha Christie.
Por tudo, um espetáculo recomendável para os admiradores de Agatha Christie e do gênero em geral.
(O Globo, 10 de dezembro de 1982)

No final da década de 1980, o filme foi lançado em VHS no Brasil pela VTI. Na década de 1990, a fita foi relançada pela Lumiere.

Na década de 2000, o filme saiu em DVD no Brasil, como parte da coleção Agatha Christie, da Canal Studio/Universal. Em 2020, o filme ganhou uma edição mais “vistosa” em DVD no Brasil.

Em 2001, o livro (Morte na Praia) ganhou uma adaptação para a televisão, apresentada como um dos episódios da série Poirot (1989-2013), estrelada por David Suchet. Na TV, a história se manteve bem mais fiel ao livro. Mas, se comparada à exuberante e ensolarada versão do cinema, a da TV ficou fria e sem o charme do filme. (Na versão televisiva, que inclui os personagens originais do livro, um deles sofreu alteração: a adolescente Linda, que na versão para a TV virou o rapaz Lionel).

Em 2007, Evil Under The Sun também foi adaptado para video game e virou jogo de PC. O livro também está disponível em e-book e em quadrinhos (2013).

Ainda que Assassinato num Dia de Sol não tenha o clima lúgubre de outras adaptações cinematográficas de Agatha Christie, o filme se destaca pelo roteiro afiado, pela produção sofisticada, elenco formidável e visual fascinante. (E o mistério, é claro, só revelado nos minutos finais).
